Ontem resolvi arrumar toda a casa, como sempre te disse que
faria, tirando tudo de lugar e limpando cada cantinho. Lembra quando você me
lançava seu sorriso cético e olhava para a montanha de pratos sujos acumulados
na pia? dizendo-me, sem palavras, que eu não tinha coragem de nenhuma ação
muito intensa. E até que tinha razão.
Desde que você me disse, com palavras (econômicas), que não
poderia mais aparecer, fiquei pensando em tudo o que também falou com sorrisos,
olhares e gestos que devo ter ignorado.
Mas vejamos o lado bom: a sua ausência me fez arrumar tudo.
Confesso que foi a tentativa de te tirar daqui, mesmo depois de você ter saído.
Talvez, pensei, trocando a posição da cama, sua imagem parasse de surgir nela
todo instante, lendo revistas de esportes com ar de fruição ou dormindo e
roncando baixo.
Quis mudar as cores e mudei. É, aquele vermelho na parede
da sala de estar era tão você.
Embora já fosse assim antes da sua chegada. Há tanta ironia nessa vida, não é
mesmo? Agora está azul.
Mudei a fechadura da entrada, mesmo sabendo que você já não
tinha a chave da antiga. Mesmo sabendo que, ainda que tivesse, não fosse
utilizar.
Fazendo tudo isso, percebi que te perdi aos poucos achando
que você só sairia daqui por motivos extremos. Como se detalhes, quando
somados, não fizessem diferença diante do todo.
Revirei o ambiente pelo avesso, mas continuo te enxergando.
Lembranças não se esvaem assim tão facilmente, como sujeiras e objetos, ainda
que se acumulem pelos cantos, como poeira, e se estabeleçam na nossa frente,
como móveis. Não podemos jogá-las fora, e tive que me desfazer de todo o resto
antes para, enfim, perceber. Elas são as únicas coisas que nos pertencem
sempre.
No fim, não acho que devemos negar o que vivemos e sim
alocá-lo em seu devido lugar, no passado. E é isso que pretendo fazer. Pode
sorrir, já não há pratos sujos acumulados.
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Ele não esperava suas palavras. Ela, porém, precisava
dizê-las.
Colocou o papel em um envelope. Pegou o último item dele
que ainda restava na casa, o isqueiro de prata, e incinerou a sua recém-escrita
carta.
E apenas no silêncio, já estabelecido entre eles, ela
poderia ser lida. Assim como todos os pensamentos que, dirigidos ao outro, eram
remetidos a si mesmos.
Brilhante como sempre!
ResponderExcluirMt bom, Mabel! Gostei do estilo e da estetica da escrita. Passarei a acompanhar. :)
ResponderExcluirPoxa vida, como amei este texto. Parabéns é pouco. Te faço uma vênia!
ResponderExcluirRVFV