A ideia de ter o corpo preso em uma pequena caixa no
subsolo lhe dava calafrios. Temor infantil de acordar lá embaixo. Imagina só?
Certo dia sua angústia foi acentuada por um incidente: engasgou-se
com uma semente de pinha. Após se recuperar, percebeu que a linha tênue entre
vida e morte existe para todos e resolveu externar sua angústia.
José disse a sua mulher. Queria ser cremado.
Ela, ironizando o desejo do homem batalhador, disse que
eles tinham muito mais com o que se preocupar. Ele que não se atrevesse a morrer.
José disse ao seu filho mais novo. Um tanto cruel da sua
parte, crianças não lidam com a morte com a naturalidade dos mais velhos.
Ele abraçou o pai e disse que ia morrer primeiro. José
ficou emocionado.
Resolveu confessar o desejo ao seu melhor amigo.
“Ora, José”, ouviu como resposta, “Quando você bebe fica
com cada conversa esquisita...”.
José relevou, pois, embora não tivesse bebido, seu amigo já
estava na quarta dose de um whisky de qualidade duvidosa.
Pensou um tanto amargurado que deveria ter sido mais
criterioso na escolha das amizades, para em seguida lembrar que fora ele quem
apresentara o amigo ao mundo dos botecos.
Sua última esperança foi a filha mais velha. Sensata,
correta, compreensiva. José se perguntava como ela conseguia ser assim. Não
fora graças aos pais, certamente.
Embora tenha protestado no início – falar dessas coisas não é saudável,
pai – ela, para tranquilizar
aquele inquieto espírito, disse que seria feita a sua vontade.
José suspirou aliviado. Disse à filha para jogar suas
cinzas no rio ou qualquer coisa assim. Ela concordou, mas não se fala nunca mais sobre
isso!
Cerca de dois anos depois, José caminhava em direção à
banca de jornal para comprar o exemplar de domingo.
Fazia isso por puro hábito, já que não mais lia as
notícias. Para manter a rigorosidade das informações: sua mulher lia o resumo
das novelas e o horóscopo, e fazia questão disso.
Um motorista distraído conversando ao celular – também era
um hábito – ignorou o sinal fechado no qual José confiara.
José foi ao chão. Sentiu sangue cobrindo todo o seu corpo. Pensou
logo na filha estava trabalhando em outro continente.
Dizem que as pessoas visualizam trechos da sua vida nos
momentos que antecedem a morte. José, no entanto, só lembrava com clareza que a
única que prometera cremá-lo estava há quilômetros de distância e não chegaria
a tempo de evitar o seu enterro tradicional.
José teve medo.
Os médicos se preparavam para a última tentativa de
desfibrilação quando ele – como observaram os doutores algum tempo depois –
voltou ao mundo quase que milagrosamente.
O estado, no entanto, ainda era crítico. Tentava com
desespero se comunicar, mas as palavras não saiam nem um pouco claras.
Os médicos, alheios aos seus desejos, disseram calmamente:
não se esforce, estamos tentando salvá-lo.
Mais tarde, relatando à mulher o ocorrido, o médico
lamentou sua perda – ele havia sido um guerreiro – e disse que a sua última
palavra foi “amado”.
A enfermeira, influenciada por uma cena romântica da novela
assistida no dia anterior, afirmou que ele havia dito com todas as letras: “eu
fui um ser amado”.
A mulher estranhou aquele lapso de reconhecimento, mas era
o que às vezes acontecia antes da eterna inconsciência, concluiu.
Ficou realmente triste com a partida inesperada do seu
companheiro. Mesmo só percebendo na iminência da morte o quanto ela se
esforçara para manter a família e a relação dos dois, antes tarde do que nunca.
“Pobre José”, pensou com súbito acesso de carinho, “terá um
enterro decente e, na lápide que guardará seu corpo de homem batalhador,
registro do seu último pensamento: ‘Marido, pai, amigo. Muito amado’”.
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