25 de set. de 2012

O medo da (pós) morte

José queria ser cremado.

A ideia de ter o corpo preso em uma pequena caixa no subsolo lhe dava calafrios. Temor infantil de acordar lá embaixo. Imagina só?
Certo dia sua angústia foi acentuada por um incidente: engasgou-se com uma semente de pinha. Após se recuperar, percebeu que a linha tênue entre vida e morte existe para todos e resolveu externar sua angústia.
José disse a sua mulher. Queria ser cremado.
Ela, ironizando o desejo do homem batalhador, disse que eles tinham muito mais com o que se preocupar. Ele que não se atrevesse a morrer.
José disse ao seu filho mais novo. Um tanto cruel da sua parte, crianças não lidam com a morte com a naturalidade dos mais velhos.
Ele abraçou o pai e disse que ia morrer primeiro. José ficou emocionado.
Resolveu confessar o desejo ao seu melhor amigo.
“Ora, José”, ouviu como resposta, “Quando você bebe fica com cada conversa esquisita...”.
José relevou, pois, embora não tivesse bebido, seu amigo já estava na quarta dose de um whisky de qualidade duvidosa.
Pensou um tanto amargurado que deveria ter sido mais criterioso na escolha das amizades, para em seguida lembrar que fora ele quem apresentara o amigo ao mundo dos botecos.
Sua última esperança foi a filha mais velha. Sensata, correta, compreensiva. José se perguntava como ela conseguia ser assim. Não fora graças aos pais, certamente.
Embora tenha protestado no início – falar dessas coisas não é saudável, pai – ela, para tranquilizar aquele inquieto espírito, disse que seria feita a sua vontade.
José suspirou aliviado. Disse à filha para jogar suas cinzas no rio ou qualquer coisa assim. Ela concordou, mas não se fala nunca mais sobre isso!
Cerca de dois anos depois, José caminhava em direção à banca de jornal para comprar o exemplar de domingo.
Fazia isso por puro hábito, já que não mais lia as notícias. Para manter a rigorosidade das informações: sua mulher lia o resumo das novelas e o horóscopo, e fazia questão disso.
Um motorista distraído conversando ao celular – também era um hábito – ignorou o sinal fechado no qual José confiara.
José foi ao chão. Sentiu sangue cobrindo todo o seu corpo. Pensou logo na filha estava trabalhando em outro continente.
Dizem que as pessoas visualizam trechos da sua vida nos momentos que antecedem a morte. José, no entanto, só lembrava com clareza que a única que prometera cremá-lo estava há quilômetros de distância e não chegaria a tempo de evitar o seu enterro tradicional.
José teve medo.
Os médicos se preparavam para a última tentativa de desfibrilação quando ele – como observaram os doutores algum tempo depois – voltou ao mundo quase que milagrosamente.
O estado, no entanto, ainda era crítico. Tentava com desespero se comunicar, mas as palavras não saiam nem um pouco claras.
Os médicos, alheios aos seus desejos, disseram calmamente: não se esforce, estamos tentando salvá-lo.
Mais tarde, relatando à mulher o ocorrido, o médico lamentou sua perda – ele havia sido um guerreiro – e disse que a sua última palavra foi “amado”.
A enfermeira, influenciada por uma cena romântica da novela assistida no dia anterior, afirmou que ele havia dito com todas as letras: “eu fui um ser amado”.
A mulher estranhou aquele lapso de reconhecimento, mas era o que às vezes acontecia antes da eterna inconsciência, concluiu.
Ficou realmente triste com a partida inesperada do seu companheiro. Mesmo só percebendo na iminência da morte o quanto ela se esforçara para manter a família e a relação dos dois, antes tarde do que nunca.
“Pobre José”, pensou com súbito acesso de carinho, “terá um enterro decente e, na lápide que guardará seu corpo de homem batalhador, registro do seu último pensamento: ‘Marido, pai, amigo. Muito amado’”.

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